O paradoxo do clique: no Dia Mundial da Fotografia, celebramos as memórias que se esvaem
- Guto Aeraphe
- 19 de ago.
- 3 min de leitura

Hoje, 19 de agosto, o mundo celebra o Dia Mundial da Fotografia. A data, que homenageia a invenção do daguerreótipo, um dos primeiros processos fotográficos, deveria ser um convite a celebrar a nossa capacidade de congelar o tempo, de eternizar um instante. No entanto, em uma era de saturação digital, a frase "poderia ser o dia mundial das lembranças que estão se perdendo" ecoa com uma verdade desconcertante e urgente.
Vivemos a era do registro incessante. Com smartphones ao alcance das mãos, a capacidade de documentar cada segundo da nossa existência tornou-se quase uma extensão de nós mesmos. A promessa do digital e da nuvem, com seu armazenamento virtualmente infinito, nos libertou das limitações físicas do filme fotográfico. Contudo, essa liberdade aparente nos aprisionou em um paradoxo: nunca fotografamos tanto e, talvez, nunca nos lembramos tão pouco.
Antigamente, a fotografia era um evento. Exigia intenção, um planejamento cuidadoso para não desperdiçar um dos 12, 24 ou 36 poses de um rolo de filme. Cada clique era valioso, pensado. A espera pela revelação criava uma expectativa, um ritual que culminava no ato de folhear um álbum de fotos, onde cada imagem impressa servia como um portal tangível para uma memória específica. As fotografias eram tesouros, guardados e revisitados, e por isso, as lembranças associadas a elas eram fortalecidas. Nós vivíamos o momento intensamente, e a foto era a coroação daquela vivência, um souvenir da alma.
Hoje, o cenário é drasticamente diferente. A ânsia de capturar o momento perfeito muitas vezes nos impede de vivê-lo plenamente. Pais assistem aos primeiros passos de seus filhos através da tela de um celular. Viajantes experienciam paisagens deslumbrantes com o filtro do Instagram já em mente. O foco se deslocou da experiência para o seu registro. O resultado são centenas, milhares de fotos e vídeos que se acumulam em galerias digitais desorganizadas – cemitérios de instantes que nunca mais serão visitados.
Essa avalanche de imagens cria uma inflação de valor. Quando tudo é registrado, nada se torna verdadeiramente especial. A foto do café da manhã compete pela mesma atenção que a do casamento de um amigo. Os momentos incríveis, que antes seriam guardados com carinho, se perdem em meio a um oceano de capturas banais. São pixels esquecidos, dados perdidos na vastidão da nuvem, lembranças que não tiveram a chance de se consolidar porque a nossa atenção já estava voltada para o próximo clique.
Portanto, neste Dia Mundial da Fotografia, a reflexão se faz necessária. Mais do que celebrar a tecnologia, talvez devêssemos nos questionar sobre o nosso relacionamento com ela. Que valor estamos dando às nossas próprias histórias? De que adianta ter um arquivo de vida quase infinito se não nos damos o tempo de revisitá-lo, de sentir novamente o que cada imagem representa?
Talvez seja o momento de resgatar um pouco da intencionalidade do passado. De escolher o que fotografar, de estar presente no momento antes de decidir registrá-lo. De, quem sabe, imprimir algumas fotos, montar um álbum, sentir a textura do papel e permitir que a memória tátil reforce a memória afetiva.
A fotografia, em sua essência, é uma ferramenta para combater o esquecimento. Mas, ironicamente, seu uso excessivo e impensado na era digital está nos ensinando a esquecer. Que esta data sirva não apenas para celebrar a imagem, mas para nos lembrar de que a verdadeira fotografia não é aquela que apenas se vê, mas aquela que se sente e, acima de tudo, que se recorda.

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