“Não dá para fazer um filme bom com um roteiro ruim, mas dá para fazer um filme ruim com um roteiro bom”. O roteiro serve como o documento de base de cada filme, determinando não apenas o enredo e o diálogo, mas a estrutura, as regras internas, as motivações e a credibilidade dos personagens, além de valores intangíveis como tom e tema. Afinal, quanto melhor for o roteiro, mais foco e consistência a equipe vai ter ao criar um mundo atrativo e verossímil na tela. E é sobre esses conceitos fundamentais que vamos falar hoje.
A maioria dos filmes atuais é fiel ao modelo clássico de narrativa, baseado no movimento linear para a frente, com cada incidente, encontro e mudança de plot caminhando sempre rumo a uma conclusão que, se tudo acontecer de acordo com os planos, será ao mesmo tempo surpreendente e satisfatória para o público. E não há nada de errado nessa fórmula. Mas um roteiro excepcional tem que agarrar os espectadores pela garganta e nunca mais soltar. Ele nos leva por um caminho pelo qual não temos escolha além de seguir, distribuindo o mínimo possível de informações a cada momento para manter o público interessado no que vai acontecer em seguida — e nunca desconectado, entediado ou extremamente confuso.
Roteiristas trabalham com palavras. Mas os melhores profissionais sabem que estão lidando com um meio visual, pensando e escrevendo de acordo com isso. Apesar de as imagens de um filme serem, no fim das contas, responsabilidade do diretor, o conceito inicial começa no roteiro, quando cabe ao roteirista contar uma história por meio da descrição de cenas potentes, que transmitem o máximo de informação com a menor quantidade possível de palavras, em vez de uma série de conversas apáticas.
A IMPORTÂNCIA DO INÍCIO
Dentro dos primeiros dez minutos, um filme bem - escrito ensina ao público como assisti-lo e é nesse momento que captamos informações cruciais sobre os personagens, a ambientação física da história, o ritmo, o clima e o tom.
A sequência de abertura determina se o público vai comprar a jornada do protagonista e se ele será interessante ou de uma complexidade cativante o suficiente para ser acompanhado até os confins da terra (ou pelo menos até o fim do filme).
Nos próximos dez a vinte minutos, depois que o público for conquistado, o contexto e o clima geral da história devem ser bem - estabelecidos, os personagens principais apresentados, e o relacionamento entre eles determinado com nitidez. A partir desse ponto, tudo deve fluir de tal maneira que o espectador possa olhar para aquela primeira parte depois e perceber que até o mais surpreendente final foi completamente sustentado pelo começo — talvez tenha até sido indicado.
O UNIVERSO NARRATIVO
Um roteiro com linhas mais gerais pode, nas mãos de um diretor talentoso, dar bastante espaço para criatividade e interpretação. Porém, às vezes, detalhes minúsculos que presumimos ser escolha do diretor ou do editor aparecem primeiro no roteiro. É ele que define o mundo que iremos habitar pelas próximas duas horas — e, inicialmente, é responsabilidade dos roteiristas e de suas palavras tornar esse mundo realista e vivo o suficiente para captar nossa atenção. Isso quer dizer que o enredo leva o protagonista do ponto A ao ponto B, transportando o protagonista por uma jornada que parece pessoal e universal, ao mesmo tempo que espontânea e natural.
DICA: O enredo é o que acontece. A história é o significado. O enredo é a mecânica. A história é a emoção.
Há a premissa de que só existe meia dúzia de enredos básicos para um filme, mas são os detalhes, a profundidade e a perspicácia do roteiro que os transformaram em histórias únicas. E é exatamente em cima disso que eu desenvolvi o método Lean Film Design. A partir dele e possível construir, a partir de enredos e conflitos clássicos, um número gigantesco de histórias originais. Mas fique atento, na maioria dos casos, os filmes não dão certo na telona porque os roteiristas se apegaram apenas ao enredo em vez de explorar sua emoção, suas mensagens implícitas, suas metáforas e até sua poesia.
DICA: Para uma história dar certo, ela deve parecer nova e surpreendente, mesmo que use fórmulas antigas.
PERSONAGENS
Assim como a estrutura de um bom filme, um protagonista forte é estabelecido logo no começo, mostrando a essência de sua personalidade e seus desejos por meio de ações, diálogos e envolvimento pessoal. O termo para esse tipo de polimento no personagem se chama “motivação”, quando os roteiristas inserem mais gravidade em suas histórias e deixam os protagonistas mais empatizáveis, criando justificativas dramáticas e moralmente compreensíveis para seus atos.
DICA: Filmes ruins tratam de personagens. Filmes ótimos tratam de pessoas — mesmo que não sejam exatamente humanas.
A verdade é que os melhores personagens não são perfeitos. O público vai acompanhar até o anti-herói mais difícil do mundo contanto que seus defeitos não se originem de uma maldade pura, mas da simples fragilidade humana. Isso faz com que eles se tornem dignos do tempo e do investimento emocional do espectador, porque seus defeitos e erros são resultado de uma vulnerabilidade extremamente humana.
Porém, pelo mesmo motivo, até o mocinho precisa passar por alguma transformação significativa até o fim do filme, mesmo que seja o resultado quase imperceptível de algum conflito interior não resolvido. Além de oferecer dinamismo e um senso de progressão à história, uma pequena mudança também permite que os espectadores se sintam reconfortados, talvez até esperançosos, sobre seus próprios medos, conflitos e fracassos.
A CRISE DO SEGUNDO ATO
A estrutura também se trata de ritmo correto. Digamos que um filme tenha conseguido fisgar sua atenção nos primeiros vinte minutos. Você gosta da protagonista, está completamente cativado pelos desejos e vulnerabilidades dela, por tudo que está em jogo naquela jornada, torcendo pelo seu sucesso, ansioso para ver como as coisas vão se resolver. E então, de repente, a história fica abarrotada demais, com as cenas se empilhando uma em cima da outra, com pouco ou nenhum ímpeto. Sinto lhe informar, mas você chegou à Crise do Segundo Ato: a perdição do trabalho dos roteiristas. Um dos problemas mais comuns em filmes até então decentes é o ritmo irregular, principalmente partes medianas arrastadas, soltas, nas quais o foco e a dinâmica se perdem, levando à confusão fatal do público sobre o que os personagens estão fazendo e por que deveríamos nos importar.
A verdade é que um segundo ato ruim costuma acontecer quando o roteirista recorre a obstáculos habituais ou não convincentes em que os personagens parecem estar fazendo as coisas só por fazer, ou acrescenta empecilhos e acontecimentos demais, onde oponentes parecem surgir do nada apenas para ocupar os protagonistas e que perdem sentido para o público.
No método Lena Fim design há uma parte em que eu trato exatamente disso e proponho uma forma diferente de resolver, utilizando ferramentas de design thinking. Por meio de dados que são extraídos do seu roteiro, é possível analisar graficamente o ritmo das suas cenas e identificar rapidamente onde está o problema.
O RITMO
O ritmo é uma função de várias áreas diferentes no processo de produção. Mas ele deve começar com um roteiro que mantém a história avançando em um embalo cativante, com toques de suspense, oferecendo apenas informações suficientes para manter o público curioso, mas não irremediavelmente confuso.
Quando um filme não se desdobra com tranquilidade — quando sua jornada do ponto A para os pontos B, C e D parecem cansativa ou imediata demais, o seu roteiro torna-se “episódico” —, isso significa que as cenas se conectam de um jeito desarticulado e picado, com os conflitos parando e começando de forma esquisita, em vez de fluindo em harmonia. Outro termo para esse problema é “esquemático”, que se refere a personagens e situações artificiais que foram obviamente inventadas apenas por conveniência, seja para encobrir erros fatais do enredo ou para desenhar as mensagens implícitas do filme.
RECURSOS NARRATIVOS
A maioria dos roteiros tenta obedecer às regras da narrativa clássica, estabelecendo a situação de forma eficiente, acrescentando complicações, desenvolvendo os personagens e a história, alcançando um clímax gratificante. É essa parte do meio — acrescentando complicações e desenvolvendo os personagens e a história — que é complicada, já que o roteirista precisa encontrar uma forma de fazer os personagens avançarem sem expor seus métodos. Nesse âmbito, existe um termo para um método especialmente fácil de solucionar problemas: deus ex machina. É quando algo ou alguém muito conveniente surge do nada, na hora certa, para salvar o dia ou encaminhar o protagonista para a próxima parte da jornada. Mas a artimanha também abala o ritmo, especialmente quando os personagens interrompem os acontecimentos para falar sobre alguma coisa que já sabem, apenas para beneficiar o público. Bem parecido com a exposição é o desafio complicado de mencionar ou explicar o passado sem flashbacks ou narração.
No mundo ideal, flashbacks devem ser usados apenas para elucidar os personagens — suas motivações não declaradas, aspectos emocionais e problemas psicológicos — e não para avançar a história. Como uma técnica de narração, devem ser usados para transmitir uma informação impossível de ser oferecida de outra maneira — ou quando o cineasta quer estabelecer uma distância estética entre o público e o que acontece na tela.
OS DIÁLOGOS
Entre os principais prazeres de assistir a filmes, escutar uma fala ótima é um dos mais deliciosos. Roteiristas são muito mais do que apenas diálogo. Mas é impossível ter um roteiro bom sem diálogos bons. E “bom”, nesse caso, não significa discursos perfeitos, refinados, que saem da boca dos atores com uma facilidade ensaiada em excesso (apesar de eles poderem ser bem divertidos, como acontece em qualquer filme). Diálogos estabelecem a credibilidade do filme. Então, se ele não se encaixa — se é eloquente demais, cheio de gagueira e pausas, excessivamente engenhoso —, a estrutura inteira entra em colapso.
DICA: Os diálogos devem começar tarde e acabar cedo
A maioria dos filmes ótimos tem falas memoráveis, mas os melhores vão além de ser uma coleção de citações. Em vez disso, as palavras que os personagens dizem devem ser mínimas, sem explicar ou reforçar aquilo que já está sendo mostrado na tela, mas acrescentando uma camada extra ou um contraponto à cena.
Diálogos bons são verossímeis no sentido de que os personagens devem falar de forma natural e aparentemente espontânea, sem pronunciamentos teatrais ou declamações discursistas — e devem ser moderados. Os melhores diálogos levam sutilmente o espectador a compreender algo velado que talvez nem os personagens saibam sobre si mesmos.
DICA: Está tudo nas entrelinhas e não dito com as letras.
O diálogo caminha junto com os elementos visuais — o trabalho corporal dos atores, os figurinos e o estado emocional dos personagens — para expressar o que está acontecendo. Se o roteirista não conseguir dar forma aos personagens e suas motivações sem recorrer a cenas cheias de diálogo em que só mostram a cabeça dos atores, é sinal de que o roteiro precisa ser revisto.
Na verdade, o que importa não são palavras específicas, mas o que sai dos atores. O que importa são as ideias. E conversar sobre ideias é um esporte de contato: o diálogo não se trata apenas daquilo que os personagens dizem, mas da ação em si, com todo o dinamismo e a movimentação que o termo possui. Todas as palavras fazem diferença, cada uma foi escolhida e organizada com cuidado, e cada uma contém uma imensidão de significados implícitos.
O TOM
Essa pode ser a parte mais importante e mais difícil do trabalho de um roteirista. O tom é o peso emocional do filme e dependendo da habilidade de sua condução, determina aquilo que o roteirista transmite com um filme além da trama. Ele pode ser formado pelo que vemos e ouvimos, mas toma a forma daquilo que sentimos.
Existe o que acontece em um filme e aquilo do que ele realmente se trata. Algumas obras só querem oferecer horas divertidas de entretenimento, sem se preocupar com tópicos mais profundos sobre o significado da vida e moralidade. Outras, mesmo disfarçadas de espetáculos superficiais, buscam trazer à tona questões que vão além dos princípios da história aparente, seja por meio de mensagens implícitas, metáforas ou dicas visuais sutis.
Os melhores filmes lidam com questões importantes e emoções profundas que vão além das histórias que contam. Um bom roteiro permite que os espectadores usem a própria imaginação e aquilo que acontece na tela para atribuir sentido ao todo.
Em resumo, como muitas coisas podem mudar durante uma produção cinematográfica, é impossível saber com qualquer grau de certeza o quanto de um filme específico é resultado do plano do roteirista. Mesmo assim, se quando acordar pela manhã, você ainda estiver pensando no filme a que assistiu na noite anterior — se perguntando sobre os personagens, quebrando a cabeça sobre um mistério não resolvido — é porque um roteirista habilidoso plantou essas sementes tão fundo na narrativa que se tornaram invisíveis a olho nu.
Seja direto e literal ou obscuro e não linear, um roteiro bem estruturado, se executado com cuidado por uma equipe de produção dedicada, resultará em um filme que prende a atenção dos espectadores do princípio ao fim, deixando-os satisfeitos, sem dúvidas incômodas sobre qual era a relação de uma cena específica com a história ou se a aparição de um personagem qualquer foi incluída por conveniência e não por motivos e atos autênticos.
Um filme curto mal estruturado pode parecer se arrastar por uma eternidade, enquanto um épico de três horas bem estruturado passa num piscar de olhos; conflitos introduzidos no meio do caminho em uma história com estrutura ruim parecem arbitrários, até sem sentido, enquanto, em uma história com boa estrutura, parecem integrados com as cenas e os personagens já estabelecidos. Todos nós já assistimos a filmes em que algo se encaixa direitinho ou estraga tudo: na maioria dos casos, é a estrutura do roteiro que faz diferença. Pense nisso. A gente se vê na próxima cena.
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