top of page
Buscar

Os novos limites da IA na produção audiovisual



O Google I/O 2025 nos apresentou uma virada de chave histórica na produção audiovisual: com os lançamentos do Veo 3, da plataforma Flow, do modelo Lyria 2 para músicas e da evolução do Gemini 2.5 para vozes e diálogos, a empresa estabeleceu novos parâmetros para o que é possível criar com inteligência artificial.


Se até pouco tempo a IA era vista como uma ferramenta útil apenas para protótipos e testes criativos, agora ela se consolida como uma verdadeira parceira de produção final. No entanto, esse avanço não vem sem suas contradições — e talvez tenhamos chegado a um momento onde seja preciso discutir, com urgência, os impactos disso sobre os pilares da autoria, da identidade artística e do valor simbólico da arte e da cultura.



Como diretor, roteirista e produtor cinematográfico, e alguém que pesquisa e utiliza essas tecnologias no desenvolvimento de projetos, vejo com entusiasmo o potencial que essas ferramentas oferecem. A possibilidade de simular câmeras, dirigir cenas com precisão e gerar trilhas sonoras customizadas pode otimizar processos, baratear produções e democratizar o acesso ao audiovisual.


No entanto, como toda ferramenta transformadora, a IA exige de nós não apenas deslumbramento, mas responsabilidade ética, reflexão crítica e compromisso cultural. Não se trata de negar o progresso, mas de entender que o cinema não é apenas sobre o que se pode produzir, mas sobre o porquê se produz.


A revolução da consistência e direção com IA


Uma das barreiras mais desafiadoras enfrentadas pela inteligência artificial na criação de vídeos sempre foi a incapacidade de manter consistência visual e narrativa ao longo do tempo. Personagens que mudavam de aparência entre planos, cenários que se transformavam sem lógica interna e a ausência de continuidade dramática tornavam a IA inviável para qualquer produção que exigisse coesão estética e narrativa. Essas limitações impediam que projetos mais ambiciosos, com arcos dramáticos estruturados ou linguagens visuais complexas, pudessem contar com o suporte integral de ferramentas automatizadas.


Com o lançamento do Veo 3, essas deficiências começam a ser superadas de forma notável. Desenvolvido pela DeepMind, o modelo introduz um novo patamar de controle sobre os elementos da mise-en-scène digital, proporcionando aos criadores não apenas imagens de alta qualidade, mas controle preciso e persistente sobre personagens, ambientes e movimentos de câmera. A IA agora é capaz de manter a identidade visual dos personagens ao longo de uma narrativa, garantir a estabilidade dos cenários e até sincronizar falas e sons diegéticos com precisão labial e espacial, algo que antes exigia processos de pós-produção altamente especializados.


Além disso, quando integrado à plataforma Flow, o Veo 3 se transforma em uma ferramenta de direção cinematográfica. Isso porque o Flow combina modelos como Gemini e Imagen para permitir que o usuário escolha ângulos de câmera, simule movimentos de travelling, crie transições dramáticas e estruture planos com gramática cinematográfica. Trata-se de um avanço significativo: a IA deixa de ser apenas uma geradora de imagens inspiracionais para assumir o papel de co-realizadora, capaz de contribuir de maneira ativa e funcional em todas as fases da criação audiovisual.


No campo sonoro, essa lógica se estende com os modelos Lyria 2 e Lyria RealTime, que proporcionam uma verdadeira orquestra digital ao alcance do criador. Com comandos de voz ou texto, é possível gerar trilhas sonoras originais, incluindo vocais complexos, harmonias e arranjos que podem ser manipulados em tempo real. Isso representa não apenas um ganho técnico, mas uma democratização radical da produção musical autoral, permitindo que músicos e cineastas independentes tenham acesso a recursos antes restritos a grandes estúdios.


O dilema da autoria: quando todos são artistas, quem é o artista?


Por mais fascinantes que sejam os avanços técnicos, eles trazem à tona um debate tão urgente quanto inevitável: o que acontece com a arte quando o esforço criativo é automatizado e a autoria se torna um conceito difuso?


Se qualquer pessoa pode criar um filme, uma música ou um roteiro com algumas linhas de comando — sem precisar estudar linguagem, estética ou história da arte — estamos diante de uma nova era de "banalização da autoria". A verdade é que nunca foi tão fácil criar, mas talvez nunca tenha sido tão difícil atribuir sentido ao que é criado.


A inteligência artificial nos dá acesso ilimitado à produção — mas não preenche o vazio simbólico, a falta de voz, a ausência de experiência vivida que confere profundidade à obra. O risco que enfrentamos é o de uma inflação estética: obras visualmente deslumbrantes, tecnicamente impecáveis, mas vazias de significado, criadas para alimentar o ciclo incessante de consumo, e não para provocar reflexão, emoção ou transformação.


O filósofo italiano Mario Perniola já dizia que, numa cultura onde tudo pode ser imitado ou simulado, a diferença entre quem cria e quem apenas consome vai desaparecendo. Com isso, a arte corre o risco de virar algo automático, repetitivo e vazio de significado. Em vez de emocionar ou provocar reflexão, ela passa a ser apenas mais um conteúdo entre tantos outros, perdendo sua força simbólica e seu valor cultural.


Além das questões éticas e criativas, as consequências da massificação da IA no setor cultural atingem diretamente o campo mercadológico. A facilidade de acesso a ferramentas cada vez mais potentes e intuitivas pode reduzir drasticamente o valor percebido do trabalho criativo humano, principalmente em mercados já fragilizados pela informalidade e pela competição por atenção em ambientes digitais saturados. O que antes exigia formação, experiência e sensibilidade passa a ser feito por comandos simples — e isso muda radicalmente a forma como o trabalho artístico é avaliado, remunerado e reconhecido.


Esse cenário também aumenta a precarização da mão de obra artística, especialmente entre profissionais independentes e técnicos criativos que atuam nos bastidores da produção. Áreas como trilha sonora, design, edição e animação, que tradicionalmente empregam milhares de pessoas, podem sofrer um esvaziamento econômico, com parte da demanda sendo absorvida por soluções automatizadas mais baratas — mas não necessariamente mais criativas.


Outro ponto crítico é o embate com as estruturas legais de proteção autoral, que se tornam obsoletas diante de um ecossistema em que obras são geradas por modelos estatísticos baseados em grandes volumes de dados. Como assegurar a autoria e a originalidade de uma criação quando os próprios modelos de IA foram treinados com conteúdos protegidos por direitos autorais? Essa questão, já judicializada em diversas partes do mundo, é um dos maiores impasses do nosso tempo: a autoria diluída nas engrenagens do algoritmo.


Diante disso, a pergunta que se impõe a todos nós — criadores, produtores, educadores, curadores e espectadores — é: como garantir, nesse novo mundo em que "todos podem ser artistas", que o gesto artístico humano não se perca em meio ao ruído algorítmico? Como preservar o espaço para a subjetividade, o erro, o improviso e a imperfeição — elementos que, justamente por escaparem à lógica da máquina, fazem da arte um território profundamente humano?


📌 Escrito por Guto Aeraphe — cineasta, roteirista, produtor e pesquisador de novas linguagens audiovisuais. Diretor da CMK Filmes e defensor da integração consciente entre criatividade humana e inteligência artificial.

 
 
 

Comments


bottom of page